Se sua causa é boa, por que não haveriam de se comunicar conosco e permitir que a razão e a equidade, a base das leis justas, nos julguem tanto a nós como a eles?Gerrard Winstanley (1)
O apartheid confundia a modernidade com um urbanismo
especificamente branco. Esta paranóia racial foi a causa da tremenda
hostilidade branca dirigida contra a presença dos negros nas cidades.
Como é lógico, tanto a elite como as camadas populares que lutavam
contra o apartheid, normalmente concediam ao direito igualitário para a
vida urbana um lugar central na sua política (2).
Em certas zonas de algumas cidades, e em especial em Durban, as
invasões de terrenos, mais precisamente durante o final das décadas de
70 e 80, significaram uma ruptura decisiva na racialização do espaço (3).
Nos seus últimos anos, o estado do apartheid fez um número considerável
de concessões como resposta à mobilização popular pelo direito à
cidade. Estas concessões incluíam desde reformas legais até
compensações, nas quais uma presença precária, embora autônoma, nas
cidades foi sucedida por um lugar subordinado, embora formal, nas
mesmas; com o reconhecimento, até certo ponto, por parte do estado e das
ocupações de terras urbanas (4).
Ao término do apartheid, garantiu-se na Constituição o
direito à moradia e foram promulgadas leis para proteger os ocupantes
ilegais de desocupações arbitrárias, além de impedir qualquer despejo
que deixasse as pessoas sem um lar (5).
Implementou-se uma política habitacional a partir do compromisso com o
modelo do Banco Mundial, política que contemplava a atribuição – por
domicílio – de um subsídio habitacional fixo concedido pelo governo à
iniciativa privada, a qual devia gerar rendimentos construindo dentro
dos limites do subsídio (6).
Embora não houvesse transcorrido muito tempo desde as
mobilizações massivas contra o apartheid acontecidas durante a década de
80 – dirigidas por organizações populares que contavam com um grau
considerável de autonomia em relação a qualquer controle partidário
centralizado (7), e que geralmente se confrontavam diretamente com a problemática urbana (8),
tanto o estado como suas ONGs aliadas se mobilizaram rapidamente para
reduzir a problemática política do direito à cidade a perguntas técnicas
acerca da construção de habitações. A redução do debate político à
linguagem técnica, que considerava o planejamento urbano como uma tarefa
do estado e das ONGs, além de medir o êxito em termos de “unidades
entregues”, tornou-se dominante na sociedade civil. Construiu-se um
número considerável de casas, em geral pequenas, de baixíssima qualidade
e localizadas em guetos periféricos (9).
Além disso, os projetos habitacionais foram regularmente capturados
pelas elites políticas locais e, em todos os níveis, desde a adjudicação
de contratos de construção até o subsídio para as casas individuais,
foram utilizados para apoiar os interesses políticos e pessoais dessas
elites. As estruturas partidárias locais atuaram muitas vezes de forma
cruel, recorrendo, em algumas ocasiões, à violência (10).
Uma década depois do apartheid, os planejadores
progressistas, que formavam parte ou estavam aliados ao estado
democrático, reconheceram as falhas presentes no sistema de subsídios.
Consequentemente, no ano de 2004 adotou-se uma nova política, Abrindo
Novos Caminhos (Breaking New Ground). Esta política significou uma
‘mudança’ a partir ‘do conflito e do abandono’ à integração dos
assentamentos “numa estrutura urbana mais ampla para superar a exclusão
espacial, social e econômica” por meio de “uma aproximação progressista
em terreno e de forma gradativa” (11). Contudo, a política não obteve apoio político real, de modo que não foi implementada ()12.
O estado, ao contrário, optou por um revanchismo sem trégua, regredindo
à linguagem do apartheid de ‘limpeza dos assentamentos precários’ (13).
Os assentamentos de shack agora são considerados assentamentos
precários que devem desaparecer das cidades, ao invés de comunidades que
devem ser completamente integradas às mesmas. Uma vez mais, os
assentamentos shack apresentam-se como uma ameaça às aspirações dessa elite à modernidade.
Estão se desenvolvendo três estratégias principais para erradicar os shack.
A primeira consiste em cortar ou limitar serviços tais como água,
eletricidade e coleta de lixo, entre outros, até que as condições do
lugar se tornem insalubres para a vida. A segunda é o uso de várias
formas de vigilância e de violência do estado com o objetivo de evitar a
expansão dos assentamentos ou novas ocupações. A terceira é a
destruição dos assentamentos estabelecidos. Cada vez que estes são
destruídos, alguns residentes são realocados a casas normalmente
designadas em assentamentos periféricos, enquanto outros são obrigados a
viver em shacks construídas pelo estado, conhecidas como acampamentos provisórios. Outros são deixados na rua (14).
As ações por parte do estado para os habitantes dos shacks
têm sido sistematicamente ilegais e até criminais. Mahendra Chetty,
diretor do escritório de Durban do Centro de Recursos Legais, assevera
que:
As autoridades municipais, de maneira regular e consistente, vêm infringindo a lei de forma flagrante. Uma questão recorrente com respeito aos despejos é a insensibilidade com que são levados a cabo. Realizam-se de maneira extremamente autoritária e arrogante contra os mais vulneráveis de nossa sociedade – mulheres negras pobres, idosos e desempregados (15).
Um desafio popular à re-segregação das cidades, desta vez
baseado na classe, começou a emergir com a aparição de alguns
movimentos sociais importantes a partir do ano de 2001 (16).
Desde 2004, as cidades sul-africanas foram convulsionadas por milhares
de revoltas municipais, em geral, embora não sempre, organizadas pelos
assentamentos de shack (17).
Suas principais táticas têm sido os bloqueios de estradas e greves de
votos. Apesar do aumento rápido da repressão como resultado das prisões e
violência policial regulares – violência que em alguns momentos teve
consequências fatais –, estes protestos se intensificaram (18).
Uma das reivindicações fundamentais tem sido que as
pessoas sejam capazes de decidir onde gostariam de viver. Em alguns
momentos, esta se generalizou numa demanda coletiva pelo direito à
cidade. Em muitas ocasiões os que protestam têm exigido a permissão para
permanecer em seus shacks localizados no centro e para que não haja
realocação em novos projetos habitacionais na periferia das cidades.
Desse modo, manifestam que a questão habitacional não pode ser reduzida à
concessão de uma habitação formal por parte do estado. A segunda
reivindicação se refere ao direito a co-determinar o “desenvolvimento”, o
qual considera tanto que se reconheça o planejamento urbano popular (19)
que ocorreu, por exemplo, através do reconhecimento formal das
ocupações de terrenos realizadas no passado, e um planejamento futuro,
tais como a construção de habitações e a provisão de serviços, que seja
realizada em conjunto pelas comunidades e o estado.
Em Durban, um movimento de moradores de shacks
criou-se como consequência da comoção geral. Em março de 2005, uma via
foi bloqueada pelos residentes do assentamento Kennedy Road da mesma
maneira que outras vias haviam sido bloqueadas em todo país desde 2004.
Kennedy Road é uma zona classificada como periurbana que, no entanto,
localiza-se no coração da cidade e foi um dos assentamentos escolhidos
para ser erradicado. Nos meses posteriores ao bloqueio aconteceram
intensas discussões com pessoas de doze assentamentos limítrofes, todos
eles localizados no centro suburbano. Em outubro desse mesmo ano,
decidiuse conformar o movimento de habitantes de shacks Abahlali baseMjondolo (AbM) e buscar uma política dos pobres, para os pobres e pelos pobres (20).
O movimento não foi fundado por uma ONG, uma organização
política e não conta com financiamento externo. Era, no sentido
denominado por Marcelo Lopes de Souza, um projeto político autônomo (21),
que tomou a linguagem tradicional da dignidade dos indivíduos,
recriando-a numa forma cosmopolita apropriada para a vida urbana. Desde o
princípio o movimento revelava um sentimento de afetividade e de
preocupação pelo outro, próprio de uma congregação (22); uma cultura política lenta, profundamente democrática e deliberada (23); uma diversidade impressionante de etnias, raças e nacionalidades (24).
Desde então, a relação entre movimento e estado passou da
repressão direta para o compromisso produtivo, porém cauteloso; e, em
seguida, de retorno a um modo repressivo ainda mais violento por parte
do governo. Desde o primeiro bloqueio de vias em março de 2005 até
setembro de 2007, quando uma marcha legal e pacífica até a prefeitura
foi violentamente atacada pela polícia (25), o estado negou-se a aceitar a AbM como um organização legítima.
Em certo sentido, os assentamentos que haviam se afiliado
de maneira coletiva ao movimento foram tratados pela polícia como
territórios dissidentes e, em alguns casos, quando a tensão aumentava,
foram ocupados pelas forças militares. Os protestos de AbM foram
proibidos de forma ilegal e atacados quando seus membros tentavam
desafiar as proibições. Alguns integrantes conhecidos do movimento foram
expulsos de seus trabalhos e passaram por mais de 200 prisões e outros
tipos de repressões policiais, incluindo o uso da violência policial
para prevenir, de forma física, que o movimento aceitasse convites de
rádio e televisão para participar de debates políticos (26).
Durante este período de repressão, o movimento foi vítima de uma
virulenta campanha de difamação por parte do governo, que o acusava,
principalmente, de conspiração política organizada por um agente branco
pertencente a um governo estrangeiro para desestabilizar o país (27).
Apesar das dificuldades enfrentadas pelo movimento em
outubro de 2005 até setembro de 2007, os êxitos foram consideráveis.
Este movimento estabeleceu a Universidade de Abahlali baseMjondolo,
em cujas conversações acordou-se proteger sua autonomia rejeitando os
partidos políticos. Decidiu-se que somente trataria com ONGs quando
estas estivessem preparadas e dispostas a trabalhar com o movimento na
base da reciprocidade (28).
Além disso, estabeleceram-se vínculos úteis com diferentes igrejas. O
lema chave do que se chegaria a conhecer como a “motivação política
profunda” (29) do movimento foi “fala conosco, não por nós”. Nas palavras do presidente do movimento S’bu Zikode,
Chegou a hora de que as pessoas pobres em todo o mundo definam-se a si mesmas, antes de que alguém mais o faça, antes de que alguém mais pense e atue por elas. Não permitam que outros lhes definam. Estou fazendo um chamado aos intelectuais e às ONGs para que nos deem a oportunidade de ter uma base para apoiar nossa própria criatividade, para apoiar nossas próprias políticas. Nossa política não se origina nas instituições de ensino superior. Tem sua origem em nossas próprias vidas e em nossas próprias experiências. Estamos pedindo aos intelectuais e às ONGs que trabalhem conosco para criar um espaço onde se possa pensar e debater em conjunto. Não queremos que pensem por nós e falem em nosso nome. Não estamos preparados para escutar a ninguém falar sobre a questão da ordem. Nem o governo, nem as ONGs, nem ninguém. Estamos preparados para falar com quem quer que seja (30).
Durante este período o movimento continuou se expandindo,
alcançando um grau considerável de acesso direto para ser ouvido pelas
audiências da elite. Em termos práticos, o AbM conseguiu muitas vitórias
e foi capaz de se preparar para resistir aos despejos de maneira
exitosa em todos os assentamentos onde possuem influência; construir e
defender novos shacks; concretizar abertamente e defender com
sucesso a expansão de assentamentos de shacks já constituídos; acessar a
vários serviços estatais sem aderir a nenhum partido; implementar a
instalação decreches infantis e outros projetos de apoio mútuo; conectar
(ilegalmente) milhares de pessoas ao fornecimento de energia elétrica e
muitos ao abastecimento de água; combater vigorosamente à opressão
policial; democratizar a governança nos assentamentos para conseguir o
acesso direto e sustentado a sua audição nos meios populares; defender
seu direito à dissidência contra as elites dos partidos locais; afirmar
sua oposição à retenção de prestações sociais como forma de castigo por
sua dissidência; e lutar pelo desenvolvimento de uma luta exemplar por
terras e moradias tanto no campo como na cidade.
O AbM foi capaz de organizar reuniões e iniciar campanhas
nas quais as ONGs, os acadêmicos e advogados que estivessem dispostos a
trabalhar pelo movimento baseando-se no respeito mútuo e na área onde o
movimento é forte, pudessem fazê-lo; diferente do típico que é tomar
como base o suposto direito a liderar e dominar de fora as organizações
populares. A primeira campanha implementada deste modo foi contra a Lei
de Assentamentos Precários. Esta lei foi primeiramente proposta e em
seguida promulgada na província de KwaZulu-Natal no ano de 2007. A
intenção era repeti-la em outras províncias. Basicamente esta lei
criminaliza todas as ocupações ilegais de terra, as resistências contra
as desocupações e qualquer organização de moradores de shacks que
ocupasse a terra de forma ilegal e que reunisse dinheiro por meio de uma
taxa de adesão (31).
Este processo de resistência a Lei de Assentamentos Precários incluiu
mobilizações massivas, debates públicos e uma contínua disputa legal
para declará-la como inconstitucional.
Pouco a pouco, tornou-se aparente que o movimento havia
entrado numa segunda fase após o ataque contrário em setembro de 2007.
Este ataque foi presenciado por bispos locais, os quais o condenaram
vigorosamente (32). Também foi condenado por organizações internacionais de direitos humanos (33).
Em seguida as repressões policiais ilegais terminaram, o estado
reconheceu a AbM como um representante legítimo dos quatorze
assentamentos de Durban e as negociações com oficiais municipais foram
iniciadas (34).
No princípio houve tentativas de persuadir ao AbM a “transformar seu
discurso político num discurso a favor do desenvolvimento”, o que foi
rejeitado (35).
Por algum tempo chegou-se a um beco sem saída, mas uma vez assegurado
ao AbM seu direito de continuar seu discurso político, dentro e fora das
negociações, estas puderam continuar.
Em maio de 2008 imigrantes africanos foram atacados e
expulsos dos assentamentos de shack em todo o país numa onda de
perseguições xenófobas (36). O AbM decidiu prover refúgio e defender todos os estrangeiros (37).
O movimento foi capaz de assegurar que nenhum assentamento afiliado ao
movimento fosse atacado e que os ataques executados em assentamentos não
afiliados fossem detidos (38).
Em fevereiro de 2009, o AbM e o Município de Durban
anunciaram um acordo no qual ambas partes se comprometiam a participar
das remodelações de três assentamento in-situ, incluindo Kennedy Road, e na provisão de alguns serviços básicos para quatorze assentamentos (39).
O fato se traduziu num número importante de vitórias, incluindo uma
ruptura decisiva com a lógica espacial do apartheid (os assentamentos
onde acontecerão melhorias estão na parte suburbana, porém dentro da
cidade), o que constitui uma forma de reconhecimento da necessidade de
acesso digno aos serviços para os assentamentos e a ideia de que o
desenvolvimento pode ser um processo colaborativo entre as comunidades e
o estado.
Em setembro de 2009, no entanto, alguns líderes foram
atacados no assentamento Kennedy Road por um grupo armado que entoava
lemas étnicos (40).
A polícia se negou a ajudar o AbM e somente estava presente para
desarmar a resistência espontânea à multidão. Pessoas morreram durante a
tentativa de defesa contra o grupo e as casas de mais de trinta líderes
da AbM foram destruídas e saqueadas depois que os dirigentes locais do
partido que está no poder tomaram o controle do assentamento. Os
dirigentes partidários, tanto na cidade como na província, atacaram o
movimento com uma linguagem extremamente forte nos dias posteriores ao
ataque, condenado-o por sua exigência perante o governo para que o mesmo
declarasse inconstitucional a Lei de Assentamentos Precários e
acusando-o de se opor ao desenvolvimento. Afirmou-se aos oficiais da
polícia e do estado, bem como aos repórteres, que as ONGs estrangeiras
financiavam omovimento com o objetivo de deter o desenvolvimento para
que, deste modo, os africanos continuassem pobres e mantivessem seu
acesso ao financiamento.
Três semanas depois dos ataques, o AbM conseguiu que a
Corte Constitucional declarasse inconstitucional a Lei de Assentamentos
Precários. Foi uma vitória eminente (41).
Contudo, partidários dos que estão no poder têm ameaçado abertamente de
morte os líderes do movimento, num contexto de intensa hostilidade ao
mesmo, a exemplo de condutas ilegítimas por parte da magistratura local (42).
Estes ataques apoiados pelo governo contra o movimento estão
acontecendo em meio a uma mudança geral para uma política étnica mais
autoritária, de modo que o futuro do movimento, bem como de qualquer
afirmação popular do direito à cidade na África do Sul, é incerto.